11 de ago. de 2006

No Jornal Correio Popular

Autobiografia relata trajetória de superação


Correio Popular Campinas, sábado, 5/08/2006

Caderno C


Katia Fonseca

DA AGÊNCIA ANHANGÜERA

katiaf@rac.com.br

Mulher, negra e de origem pobre, Elaine Pereira da Silva conseguiu realizar seu sonho de menina e formar-se em Medicina pela Unicamp. Mas, como disse o poeta Torquato Neto —, um dos fundadores do movimento tropicalista da década de 70 — “não se vive intensamente sem punição”. Principalmente quando se é negro num país dissimulado como o Brasil. Assim, Elaine sofreu todos os tipos de discriminação racial e econômica (e em todos os níveis sociais, de professores a faxineiros).

Sua saga, que ainda não terminou, ela conta no livro Pérola Negra — A História de um Caminho, da Editora Komedi. Os relatos abrangem os fatos mais marcantes da vida da escritora desde sua infância até 1998. “Mas nesses oito anos, do final do livro até hoje, tenho material para outra obra e já tenho até o título: Pérola Negra — Com os Pés no Mundo”, diz a médica. Fato lamentável, já que esse “material” a que ela se refere é composto, fundamentalmente, de episódios de racismo e maus tratos.

Como se fossem poucos os motivos para discriminação, além de mulher, negra e pobre, Elaine sofreu uma lesão cerebral, em 1993 (quando estava no 5 ano de Medicina), segundo ela, por negligência médica (o clínico responsável está sendo processado por ela). Após quatro dias em coma e muitas idas e vindas a hospitais, foi diagnosticado — tardiamente — neurocisticercose. “É a doença provocada por um verme presente na carne de porco que se aloja no cérebro humano”, explica Elaine. Grande parte do livro, a autora dedica a esse assunto, narrando como uma hipersonolência aliada a fortes dores de cabeça lhe incomodaram durante anos sem que qualquer médico procurado por ela tivesse visto, aí, um indício da enfermidade. Coisas de Brasil!

Pérola Negra é o testemunho de um sofrimento atroz, tanto físico quanto psicológico. A doença gerou um desequilíbrio mental temporário, o que afastou Elaine do convívio social. “Tive ao meu lado apenas Deus e dois amigos: Fabríco Caneppele e Jamiro da Silva Wanderley”, conta a médica que faz questão de citar nominalmente os dois médicos, seus mestres e grandes companheiros.

Literatura

Do ponto de vista literário, o livro de Elaine deixa a desejar. É prolixo, recheado de detalhes dispensáveis — como a íntegra de redações escritas pela autora em época escolar ou reproduções de poesias ou letras de músicas enormes e inteiras — e usa e abusa das epígrafes (120!). Mas como relato, como testemunho de vida e como raio X de uma nação subdesenvolvida econômica e socialmente, na qual impera o preconceito e a inversão de valores, é estupendo. A leitura flui — apesar dos problemas de estilo —, instigada pelo turbilhão de injustiças, contratempos e inépcia médica que, literalmente, abalrroaram a vida de Elaine.

Mal ela consegue vencer um obstáculo — seja acadêmico (precisou fazer em nove anos o curso de Medicina por causa da doença), sentimental (casamentos desfeitos, traição de amigos) ou intelectual (perda de memória, hipersonolência) — outro vem em seguida, na próxima “esquina” da vida.

Livro e palestras

Mas Pérola Negra trouxe a redenção para sua autora e, hoje, ela afirma de boca cheia: “Em 13 anos, os últimos dois meses foram os mais felizes da minha vida!”. Com o lançamento do livro, em abril deste ano, um novo mundo se abriu para a médica que diz, agora, praticar “a medicina da alma, não mais do corpo”. Seu exemplo de superação tem ajudado muitas pessoas e ela passou a ser convidada para proferir palestras, contando sua saga e deixando como mensagem algo parecido com o que já disse Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”.

Elaine, com 43 anos, está aposentada (obteve o benefício por causa das seqüelas da lesão cerebral) e, hoje, só faz o que gosta: clinica voluntariamente na favela da Vila Brandina aos sábados de manhã, cuida de seu cachorro e transmite sua mensagem aos desvalidos e desesperançados, no melhor estilo “auto-ajuda”. Seu mote principal: “Não desista nunca, pois ‘sonhos não envelhecem’”.

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